O problema em ter como atriz preferida uma senhora de 90 anos é o enorme abismo de tempo que nos separa. Existem trabalhos de Nathalia Timberg que jamais terei a oportunidade de assistir, justamente por ter nascido atrasada, como costumo dizer. Para aplacar esse sentimento, eu consumo muita crítica teatral, como se elas pudessem me oferecer a sensação de estar na plateia durante os anos 50 ou 60.
Por coincidência, um dos meus espetáculos preferidos de Nathalia, A Cerimônia do Adeus, de Mauro Rasi, faz parte do grupo "Nunca te vi, mas sempre te amei". Quando o espetáculo estreou, em 1987, faltavam quatro anos para meu nascimento. Minha mãe ainda nem havia conhecido meu pai, mas lá estava Nathalia Timberg e Sérgio Britto interpretando Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre respectivamente.
Em 2018, viajei ao Rio de Janeiro para assistir a uma palestra com Daniel Schenker, pesquisador e crítico teatral, sobre o Teatro dos Quatro. A sociedade, formada por Sérgio Britto, Mimina Roveda e Paulo Mamede, encenou diversos espetáculos diferentes para a época e é o responsável por trazer autores inéditos para o Brasil como Fassbinder. A famosa adaptação de As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, com Fernanda Montenegro e Renata Sorrah, é do Teatro dos Quatro. Coincidência ou não ("como se isso aqui não fosse só isso aqui", já dizia Letrux), A Cerimônia do Adeus é assinada pelo Teatro dos Quatro.
Na palestra, Nathalia estava lá para dar seu depoimento. Ela chorou tanto, tão forte e intensamente, que fiquei assustada. Queria sair correndo e abraçá-la. Então me dei conta de como os espetáculos que ela havia feito com o Teatro dos Quatro (A Cerimônia do Adeus, Filomena Marturano e Viagem a Forli) eram potência. Durante a leitura do livro de Daniel, Teatro dos Quatro: A Cerimônia do Adeus do Teatro Moderno Brasileiro, já dava para perceber a força que essa iniciativa teve durante os anos 80, uma época em que o teatro ainda não era dominado pelo seguro, pelo o que daria dinheiro. O grupo se arriscou e o resultado está aí: eu adoro um espetáculo deles que nunca vi!
Depois da experiência de ver meu ídolo chorando a três metros de mim, decidi visitar a Funarte, no centro do Rio de Janeiro. Eu e uma amiga ficamos o dia inteiro lá. Conversei com as arquivistas e pesquisei sobre o Teatro dos Quatro. Encontrei recortes de jornal da época em que os espetáculos estrearam, o que me deu uma estranha sensação de estar muito perto de Sérgio Britto, alguém que eu havia aprendido a admirar por causa de Nathalia Timberg.
O documento mais precioso que encontrei durante essa visita foi uma cópia do texto de A Cerimônia do Adeus. Me surpreendi ainda mais quando a arquivista me informou que eu poderia tirar uma cópia da peça de teatro e levá-la para minha casa. Saí correndo e tirei duas cópias: uma do espetáculo de Mauro Rasi e a outra de Meu Querido Mentiroso, de Jerome Kilty e tradução de Barbara Heliodora, espetáculo que Nathalia encenou três vezes, em três momentos diferentes de sua amizade com Sérgio Britto.
Comecei a ler A Cerimônia do Adeus no aeroporto, enquanto esperava meu voo de volta para Porto Alegre, e me apaixonei. Durante a leitura, eu só pensava na perfeição daquele texto, na mensagem que ele deixou comigo, do alento que foi lê-lo e me sentir um pouco menos estranha nesse mundão da porteira grande. Agora, durante a quarentena, decidi reler A Cerimônia do Adeus e, apesar de me irritar um pouco com algumas questões, ela permanece quentinha no meu coração.
Mauro Rasi é um autor que foi bastante encenado pelo Teatro dos Quatro. Recentemente, fiquei sabendo que estão produzindo um documentário sobre ele. Fiquei contente, acredito que seja a oportunidade de conhecer sua obra um pouco melhor. Voltando ao Rasi, ele começou escrevendo comédia do tipo besteirol nos anos 70. Logo no começo de sua carreira, Rasi recebeu uma espécie de batismo: Antônio Aburamjra se apaixonou pelo o que ele escrevia. Ele incentivou o jovem a continuar escrevendo. Além disso, Amir Haddad dirigiu uma de suas primeiras peças, Ladies na Madrugada.
Foi com o espetáculo A Cerimônia do Adeus que Mauro inaugurou sua fase madura e autobiográfica. O personagem principal do espetáculo é Juliano, um garoto do interior que deseja fugir do conservadorismo, simbolizado por sua família, principalmente sua mãe, Aspasia. A peça de teatro guarda muitas semelhanças com o próprio passado de Rasi: o autor nasceu em Bauru, interior de São Paulo, e Juliano vem de uma cidade do interior, por exemplo.
Para fugir do marasmo daquele mundo, Juliano corporifica Sartre e Simone de Beauvoir, seus ídolos. Enquanto os outros personagens da trama os enxergam como livros, o adolescente conversa e interage com eles como se fossem pessoas do cotidiano. Para mim, essa é uma das melhores sacadas do texto. Como os outros personagens enxergam livros, acontecem situações engraçadas. Em uma das cenas, a mãe joga o livro de Simone de Beauvoir no chão. Porém, o que público via era Nathalia Timberg (Simone) sendo derrubada por Aspasia (Yara Amaral).
Fui uma adolescente muito solitária e, quando li que Juliano recriou o irreal dentro do real, é claro que me identifiquei. Eu falava sozinha e vivia dentro do meu próprio mundo. Qual adolescente não viveu assim, não é? A diferença entre eu e Juliano é que ele é muito mais militante do que fui naquela época. Ele sonha em mudar o mundo, em ser o novo Sartre de sua geração. Em muitos momentos, Juliano se comporta como um esquerdomacho. Humilha a mãe, mas admira a busca de igualdade de gênero de Simone de Beauvoir. Contradições.
Juliano tem a prepotência do adolescente que acha que sabe mais que os outros. É impossível não cruzar as características dele com as de um garoto que namorei na adolescência. Inclusive, o tal ex-namorado leu Sartre e se vangloriava de ter entendido tudo. É bem interessante cruzar essa postura, a de que os homens são sempre seguros, mesmo quando não sabem, com a minha, que é a de achar não saber nada. Fui ler Beauvoir na faculdade apenas e, desde então, ela me faz pensar sobre muitas coisas. Nunca tive uma resposta concreta vindo dela.
Se eu fosse apontar uma falha de A Cerimônia do Adeus, seria a representação feminina. Existem três mulheres importantes no espetáculo: Baby, Aspasia e Simone de Beauvoir. Baby é uma amiga de Juliano, taxada de burra por Sartre, já que ela se interessa por leitura. É como se ela não pudesse entender textos difíceis por ser bonita demais, logo, frívola. Aspasia é o próprio conservadorismo, mas você passa a ter empatia por ela ao perceber o quanto ela também é oprimida dentro daquele lar. Rasi nos dá espaço para desenvolver essa empatia quando coloca Simone (o livro/a mulher) para conversar com Aspasia. Porém, durante a conversa, percebemos que Beauvoir tenta empurrar para a outra mulher sua forma de pensar. Como se abolir a família fosse a melhor escolha. Como se a maternidade fosse muito ruim. Dessa forma, não há espaço para que pensamos em um feminismo que abarque o casamento, e também a independência, é como se as coisas se anulassem. Por isso, tenho minhas ressalvas em relação ao que Mauro Rasi inseriu em A Cerimônia do Adeus.
Outro detalhe bastante interessante sobre a construção de personagens reside na personagem Hermes, o pai de Juliano. Ele só "aparece" tossindo em off. A função de Hermes é tossir e não ter opinião sobre nada. Como sempre, a criação do filho recai sobre a mãe, e ela se sente culpada pelo "revolucionário" que seu filho está se tornando. Quando o filho ameaça ir embora, achamos que ele finalmente aparecerá e falará. Que nada. Hermes é um túmulo.
Também existe, em A Cerimônia do Adeus, uma tensão bissexual. O texto deixa muito claro que Juliano se interessa por Simone, mas também por seu primo, Lourenço. Acho um detalhe muito interessante, até porque todes nós já vivemos dúvidas em relação à nossa sexualidade. Na peça de teatro, a bissexualidade é condenada, mas a heterossexualidade também. Aspasia não admite que o filho pense em querer se relacionar com Simone de Beauvoir, já que ela é velha.
A adaptação para os palcos é muito interessante. A pergunta que se faz presente quando lemos o texto da peça é: como adaptar de uma forma que o espectador perceba a diferença entre o mundo irreal e o real? Paulo Mamede, o diretor do espetáculo no Rio de Janeiro, chegou a uma solução fantástica: ele separou o quarto de Juliano do resto da casa usando um tecido transparente. Dessa forma, aquelas paredes ficavam "protegidas" e mostravam o paraíso irreal de Juliano. No texto da peça, também encontramos a varanda de Juliano dando para Paris, o Café de Flore, etc. Para recriar esse cenário, a direção escolheu uma trilha sonora que remetesse à Paris dos anos 40 e 50, com Juliette Gréco e Maria Callas.
Uma curiosidade sobre o elenco é que Marieta Severo havia sido cogitada para o papel de Aspasia. No entanto, ela não conseguiu aceitar por conta de outros compromissos profissionais. Em 1989, Marieta interpretaria Aspasia em A Estrela do Lar, outra peça autobiográfica de Rasi. Vale colocar que Juliano reapareceria em outras peças de Rasi, todas autobiográficas, como Viagem a Forli.
A Cerimônia do Adeus ficou nove meses em cartaz no Rio de Janeiro e, então, chegou a hora de ser encenada em São Paulo. Ulysses Cruz assumiu a direção e, praticamente, fez uma nova montagem. Retirou o tecido que separava o quarto de Juliano do resto da casa, o que gerou atritos com Mauro Rasi. De acordo com Daniel Schenker, Cruz investiu em um espetáculo mais próximo de uma superprodução. Livros caíam do teto e Paris foi parcialmente recriada no palco. Até mesmo uma lambreta atravessava o palco!
Os programas das peças do Teatro dos Quatro eram um primor. Eles sempre iam para um lado menos convencional, aliando informações sobre o autor e entrevistas com o diretor. Com A Cerimônia do Adeus não foi diferente: o programa da peça tornou-se A Voz do Interior, um jornal fictício que explicava o que estava acontecendo no mundo na época em que A Cerimônia do Adeus era ambientada. É um trabalho muito bacana e cuidadoso. O Teatro dos Quatro caprichava em absolutamente tudo.
Com 200 apresentações, A Cerimônia do Adeus foi um sucesso de público. Nathalia Timberg comenta aqui sobre o espetáculo:
Considero "A Cerimônia do Adeus” a melhor peça do Mauro. O que mais lembro é a grande qualidade imaginativa do Mauro. Este período de convivência com ele foi um privilégio, pois ele era uma pessoa muito inteligente e criativa.
Sei que o caráter do teatro é efêmero, mas eu adoraria ter tido a chance de poder ver pessoalmente os livros caindo do teto, Nathalia interpretando Simone de Beauvoir e todo o ambiente que imaginamos ao ler a fortuna crítica e o texto da peça. Mas isso fica para meus sonhos mesmo.
Gostei muito de tudo, das informações sobre a peça, das impressões pessoais... Impressionante pensar que no ano em que nasci havia um grupo desses, pensando e produzindo um conteúdo tão revolucionário ainda hoje - talvez principalmente hoje. Bonito pensar no que fica, no que reverbera de tão antigamente.
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